Quem me conhece sabe que gosto de ter tudo controlado e quando
pensei em aumentar a família não foi diferente.
Estávamos em 2013 e
decidimos ter o nosso primeiro filho. Fiz todos os exames possíveis antes da gravidez e porque não
queria começar esta nova etapa e depois descobrir que havia problemas por
tratar.
Mal começámos a tentar, engravidei. Foi uma imensa felicidade para
toda a família!
Fiz a minha primeira ecografia às onze semanas. O médico achou
melhor repetir às treze semanas alegando que o bebé estaria mais
desenvolvido. Repeti a ecografia e o
médico afirmou estar tudo bem. O médico de família concordou, e eu estava
radiante, vinha aí o meu bebé.
Chegou o dia por mim mais aguardado, a ecografia morfológica.
Estava grávida de vinte semanas e muito curiosa por saber o sexo do bebé
(desejava muito uma menina). Fui a uma médica xpto recomendada por imensas
pessoas, pois a situação de ter de repetir a primeira ecografia tinha-me
deixado um pouco nervosa.
O pai do bebé estava a trabalhar, por isso foi a minha irmã que me
acompanhou enquanto a médica me fazia a ecografia.
“Se me conhecesse, sabia que o facto de não estar a falar muito
era mau sinal… mas vou explicar-lhe tudo com calma”. Foram estas as palavras
que começaram o meu pesadelo.
“Começamos pelos rins mãe. Má formação grave num deles”. Ok pensei
eu, pode viver só com um rim. “O bebé tem seis dedos em casa mão”. Sem problema
mais uma vez, não era grave e podia ser operado mais tarde. Mas os problemas
continuavam: fenda labial grave, problemas no coração e partes do cérebro que
não tem. Probabilidade enorme de morrer ainda antes do nascimento.
Percebi que era mau, muito mau. Descobri também que o meu bebé,
que mexia, dava pontapés e reagia à minha voz, era a tão esperada menina.
A médica chamou outra colega para uma segunda opinião, e ambas
desconfiavam que fosse trissomia 13. Explicaram que devia ser encaminhada para
o hospital, onde decisões teriam de ser tomadas, pois ainda que a bebé nascesse
viva, não iria sobreviver muitas horas. A minha decisão de não avançar com a
gravidez estava tomada mesmo antes de falar com o pai.
Pensei que seria chegar ao hospital e resolver tudo na hora, seria
mais fácil assim, como arrancar um penso da pele. Mas fui enviada para casa
onde iria aguardar enquanto tratavam do processo. Fosse lá isso o que fosse.
Foram as piores semanas da minha vida. A minha bebé estava dentro
de mim, viva, a reagir a todo o tipo de estímulos, e eu só pensava em acabar
com a sua vida. Comecei a rejeitar a minha filha, pois amá-la doía demais.
Implorava para que ela não se mexesse para não me relembrar que tive um bebé
desejado e vivo, dentro de mim.
Fui chamada à maternidade para tratar de questões burocráticas.
Durante esse processo foram incrivelmente frios comigo e desumanos com a minha
dor. Obrigam-me a fazer uma ecografia e a voltar a ouvir o coração da minha
menina. Como se fosse preciso que me relembrassem que ela estava viva e que eu
é que tinha de lhe tirar a vida. Como se não bastasse, mandam-me para casa
esperar mais duas semanas porque não tinham vaga antes para tratar do assunto.
O assunto era por fim à vida da minha filha.
Passei essas semanas fechada em casa. A gravidez era visível e não
queria perguntas. A minha filha mexia-se constantemente como que a implorar um
desfecho diferente.
Os dias arrastaram-se até à véspera
do internamento onde me despedi da minha filha e pedi-lhe desculpa pela minha
decisão, senti culpa pois estava a escolher perdê-la, no meu coração pairava “e
se for tudo engano?”
Dei entrada numa sexta-feira,
estávamos em Fevereiro 2014. Deram uma injeção
no coração da minha filha para parar de bater (estes bebés não nascem vivos).
Esta parte foi incrivelmente violenta para mim, ter de estar ali assistir a
tudo. Segui para o quarto onde nas camas ao lado eu achei que estariam mães como
eu mas o que encontrei foram duas mães a abortar de bebés saudáveis. Foi uma crueldade para mim ter de ficar ali, a minha
raiva era proporcional à minha dor... A
minha filha que tanto desejei tinha de desaparecer. E ali estavam elas,
a tirar a vida a bebés saudáveis e perfeitos.
Sábado à noite começo com contrações
fortes e vou para a box. Tenho um desvio na coluna por isso sou picada sete
vezes até conseguirem apanhar sítio para darem a epidural. A anestesista é
brusca comigo dizendo para parar de chorar pois não tarda já tenho o meu
bebe... não sabe que não vou ter o meu bebe...
A indução continua, é domingo de
manhã e dizem-me que quando tiver vontade de fazer força que faça. Deixam-me a
mim e ao meu marido sozinhos. Afinal aquele bebé já está morto, não precisam de
cuidados para que não tenha problemas no parto. Vomito, sinto a minha filha
quente a sair, tocamos a campainha.
Quando finalmente alguém chega, traz uma bandeja para por a minha filha.
Grito que a tirem das minhas pernas, não a quero ver nem sentir.
O meu único arrependimento é não ter
visto nem pegado na minha filha, gostava que alguém tivesse tirado fotos para
quando eu fosse capaz conhecer a minha filha, gostava que a tivessem enrolado
num lençol e fosse tratada como bebé e não lixo orgânico.
Seguiu-se um longo período de
recuperação mental. Tive apoio psicológico que ajudou muito, e amor das pessoas
ao meu redor.
Durante o período pós perda eu fui uma pessoa
diferente, amarga, revoltada, invejosa. Eu queria tanto ser mãe, o sentimento
de injustiça era gigante.
O tempo passou e eu fui recuperando. Em
novembro 2014 chega o esperado positivo. A minha filha nasce 2015 e hoje em dia
sou uma pessoa radiante. Em 2018 nasce o mano e agora sou uma pessoa
completa!
Uma experiência destas marca-nos,
hoje sei que ser mãe não é um dado adquirido, quero quebrar tabus, a minha
filha sabe da mana que não conheceu e falo abertamente do assunto, se eu
tivesse ficado presa naquela dor perdia as coisas boas que me esperavam no
caminho. A todas as mães de anjo sintam-se abraçadas, o golpe é duro mas o
final feliz compensa o esforço de colar cada pedaço do nosso coração.
Carla Ribeiro
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O meu anjinho |
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O meu final feliz. |